Para encerrar a série de colunas sobre a inteligência das aves (vocês podem conferir todas as anteriores neste, finalmente vamos tratar de habilidades cognitivas desses animais que são, talvez, as mais similares às nossas: a compreensão de conceitos abstratos e a utilização de linguagem.
Mas antes, vamos voltar um pouco às aves abordadas na última coluna, os corvídeos. Eles ofecerem alguns dos melhores exemplos de uma capacidade que ainda não discutimos e que, até relativamente pouco tempo atrás, acreditava-se ser restrita aos mamíferos: a de brincar.
Sendo um comportamento tão banal para nós, não é de se espantar que a maioria das pessoas não perceba que brincar tem suas vantagens evolutivas. As brincadeiras dos filhotes (incluindo os nossos) servem, dentre outras coisas, para aperfeiçoar suas habilidades motoras, conhecer melhor os aspectos de seu ambiente e os objetos nele presentes, e aprimorar sua capacidade de interagir com outros animais.
Crias de mamíferos carnívoros, por exemplo, apresentam comportamentos de brincar que funcionam como treino tanto para futuras disputas com indivíduos da mesma espécie, quanto para a captura de suas presas. Mas, e quanto a brincar com seus próprios predadores?
À primeira vista soa como uma ideia completamente cretina e quase suicida! Parece ilógico que um comportamento assim estivesse presente entre animais selvagens, ainda mais se pensarmos em termos de seleção natural e no papel de destaque que os predadores tem em eliminar da população os indivíduos menos aptos… E nada parece menos vantajoso do que um animal com ‘tendências suicidas’, certo? Não exatamente…
Vejamos o exemplo dos corvídeos. Sendo aves oportunistas que não abrem mão de uma carcaça para se alimentar, é de se esperar que volta e meia estejam associadas a predadores, para comer os restos de sua refeição.
Mas um carniceiro não necessariamente deve esperar o caçador acabar pra ficar com o que resta, pois muitas vezes sobra muito pouco! Ainda mais nos ambientes inóspitos que os corvos habitam…
E lembre-se que eles ainda precisam dividir a sua parte das migalhas com outros carniceiros! Assim, quanto antes a ave chegar ao local em que uma presa foi abatida, maiores suas chances de conseguir comida.
No melhor estilo vivendo perigosamente, muitos corvos resolvem essa situação seguindo os predadores, antes mesmo que estes tenham capturado a presa! Parece pouco sensato seguir um carnívoro esfomeado de perto, e justamente por isso a ave precisa saber bem o quanto pode se aproximar, qual a velocidade do ataque do animal, etc…
A maneira encontrada para aprender isso é ao mesmo tempo simples e absurda: provocando um predador. Corvídeos juvenis apresentam esse comportamento, de esgueirar-se por trás de um carnívoro e bicar sua cauda – não por acaso, a extremidade do corpo mais distante da boca!
Dessa forma, os jovens corvos aprendem como cada predador reage, e a partir daí decidem o quanto podem se arriscar em cada caso. Parece uma explicação plausível para esse hábito tão bizarro, mas isso não quer dizer que as aves levam a situação tão a sério quanto os biólogos que a estudam…
O fato é que esses juvenis não provocam apenas os carnívoros dos quais dependem pra se alimentar, mas passam a agir desse modo com praticamente qualquer animal que encontram. Ou seja, por mais que o comportamento tenha em sua raiz uma função evolutiva específica, isso não impede que as aves sejam espertas (e sacanas) o bastante para aprender que também pode ser uma ótima brincadeira pra passar o tempo! E até, por que não, se divertir como um espectador de MMA…
(Aviso: brigas entre gatos podem ser bem violentas…)
Mas não pense que corvídeos gostam somente dessas brincadeiras, digamos, pouco saudáveis. A habilidade de usar ferramentas, da qual falamos tanto em colunas passadas, é muito difundida nessa família. E entre os diferentes fins para que essas aves empregam objetos, encontra-se também a pura e simples diversão!
Gralha-cinzenta (Corvus cornix) brincando de snowboarding na Rússia
Agora, vamos voltar à questão do entendimento de conceitos abstratos… Já pararam pra pensar em como ‘nossa cabeça funciona’, quando damos nomes às coisas que nos cercam? Sendo dotados de linguagem, muito do que aprendemos a nomear relaciona-se à nossa fala – aquela clássica situação de uma criancinha dizendo “au-au” quando vê um cachorro, por exemplo. Depois vamos aprendendo a falar melhor, e depois a ler, e então sabemos os sons associados ao que está escrito… primeiro as vogais, passando pelos fonemas e sílabas, até que chega o ponto triunfal no qual conseguimos decifrar a palavra cachorro quando a vemos no papel. E por aí vai…
Mas o passo inicial disso tudo é saber que um cão é um cão! E isso aprendemos muito cedo, após alguns contatos com esse animal, e sem muita demora passamos a reconhecer como cão toda a diversidade de raças e formas do Canis familiaris – desde um chihuahua até um são bernardo! Todo esse processo seria mais uma habilidade impressionante e exclusiva do ser humano, muitos dirão. Bem… NÃO! A lógica por trás do processo de nomear animais, objetos ou qualquer outra coisa é a categorização. Isto é, reconhecemos essas coisas e mentalmente as arranjamos em categorias. Como dissemos, qualquer criança faz isso antes de compreender bem o que são palavras. E testar isso com elas não é nada complicado, basta fazê-las apontar! Existe até um joguinho infantil pra isso, em inglês chamado ‘name game’ (desconheço o termo em português, se alguém souber…). Agora, como vocês imaginam que um simples pombo se sairia nesse jogo?
Arte de John Petsel
Em uma pesquisa recente, pombos-domésticos (Columba livia) foram treinados para bicar o símbolo da categoria correta quando fossem apresentados à foto de algum animal, planta ou objeto. Desde um cão, uma árvore ou uma flor, até coisas mais complexas como chave, chapéu e avião…
No total eram 16 categorias, e depois de entender cada uma delas (bicando o ícone de ‘bebê’ ao ver a foto representativa de um bebê, etc.), os pombos foram capazes de fazer novas associações. Compreendiam que qualquer novo avião, ou peixe, ou garrafa que vissem, devia ser enquadrado em sua respectiva categoria – mesmo que sua aparência fosse diferente da imagem inicial que aprenderam!
No total, 128 fotos diferentes foram corretamente identificadas nessas categorias prévias! Surpreendente que um pombo consiga ter uma capacidade intelectual comparável à de uma criança, não? Mas e superá-las, seria possível?
Outros estudos mostraram que essas aves conseguem classificar as coisas em categorias bem mais complexas…
Que tal reconhecer se algo é natural ou é artificial, feito pelo homem? Ou ainda ser mostrado a uma pintura, e indicar se ela é cubista ou impressionista? Pois é, nossos queridos(?) ‘ratos de asas’ conseguiram se sair bem nesses e em muitos outros testes similares! Pelo jeito não é à toa que eles se tornaram uma das aves mais bem-sucedidas do mundo…
O clássico “Só falta falar!”, que sempre alguém solta quando se vê impressionado pelo comportamento inteligente de um animal, não vale pras aves…
A habilidade de imitar vozes de outras espécies, incluindo a nossa, já é bem conhecida em alguns grupos desses animais, mas nosso entendimento sobre ela vem ficando mais claro nas últimas décadas.
Agora sabemos que a aprendizagem vocal (nada mais do que ‘aprender a falar’, no nosso caso) ocorre mesmo nas aves incapazes de imitar a voz humana. Inúmeros tipos de passarinhos somente passam a realizar os cantos típicos de sua espécie depois de ouvir machos adultos que já saibam essas canções elaboradas.
Mas não pensem que é só imitação pura e simples. Não apenas eles são capazes de aprender milhares (sim, milhares!) de vocalizações diferentes, como também as recriam, incorporando novas variações conforme as repetem. E, em alguns casos, até sons de outras espécies (ou de todo tipo de coisa, na verdade) podem ser usados nesses processos de ‘composição musical’.
Um macho de ave-lira (Menura novaehollandiae), deixando qualquer imitador no chinelo…
Mas nada disso ainda tira totalmente o sentido da expressão ‘repetir como um papagaio’, não? Bem, aí depende do papagaio! Quem já viu certos psitacídeos em cativeiro (infelizmente, muitos de origem ilegal, retirados criminosamente da natureza…) deve ter notado que nem sempre eles são meros repetidores.
Algumas expressões são ditas dentro de um certo contexto – pedindo carinho ou comida, por exemplo. Claro, muitas vezes é apenas um tipo de condicionamento: a ave é ensinada a repetir algo e aí ganha uma recompensa, e logo faz a associação entre as duas coisas.
Mas não faltam casos em que o animal aprende alguma coisa que não se esperava… Possivelmente foi com alguns desses indícios em mente que a Dra. Irene Pepperberg, da Universidade de Harvard, teve a ideia de começar o treinamento, de três décadas de duração, com a ave que ficou famosa como uma das mais inteligentes que a Ciência (e o mundo) já conheceu: Alex, um papagaio-cinzento-africano (Psittaca erithacus).
Entre as coisas que Alex mostrou-se capaz de entender, estavam conceitos como cores, formas e materiais de que os objetos são feitos. Ainda a noção de ‘maior e menor’, ‘igual e diferente’ e até mesmo a ideia de ‘nada’… E tudo isso o papagaio era capaz de dizer verbalmente quando perguntado, usando as palavras que aprendeu. Talvez mais surpreendente era a capacidade que Alex tinha de contar.
Ele conseguia contar até 6 objetos (fossem coisas que ele já tivesse visto antes ou não) e inclusive somar peças diferentes – fornecendo a quantidade de ‘blocos de madeira + chaves’, por exemplo – ou, ao contrário, contar somente um determinado tipo de objeto em meio a outros.
Um breve exemplo de Alex respondendo perguntinhas triviais (‘quantos blocos azuis’, ‘qual a diferença’, ‘de que cor é o maior’…)
A inteligência demonstrada por Alex era tão inacreditável que muitos chegaram a questionar se havia algum truque por trás disso… Foi até sugerido que a Dra. Pepperberg estivesse dando pequenas dicas, sutis demais pra serem notadas, para que a ave respondesse o que era correto.
No entanto, mesmo pessoas que nunca haviam tido contato com o papagaio podiam fazer perguntas e obter respostas corretas dele! Infelizmente, Alex morreu cedo (mesmo para um papagaio) – aos 31 anos. Pouco antes disso, ele estava em processo de aprender, basicamente, a ler: embora já soubesse soletrar palavras curtas, estava reconhecendo também os fonemas equivalentes aos sons pronunciados.
Aliás, ao que tudo indica o uso de fonemas e sílabas para formar sons com significado também não seria exclusividade do ser humano. Um estudo recente sugere que pelo menos uma espécie de ave usaria um padrão similar pra se comunicar, organizando as mesmas notas em diferentes sequências, para assim transmitir mensagens distintas.
Qualquer semelhança com as nossas palavras não é coincidência… E com esses casos incríveis, encerramos o tema ‘Inteligência das aves’ aqui no Aprenda.birds!
Espero que, com todos os exemplos apresentados nos últimos meses, tenha ficado claro o quanto esses dinossauros emplumados (opa, você ainda não sabe que aves são dinossauros?! dê uma lida então: https://www.aprenda.bio.br/portal/?p=9658), tão diferentes de nós, não ficam nem um pouco atrás dos mamíferos em termos de capacidade intelectual… E como os estudos com esses animais tem demonstrado, cada vez mais, que o ser humano não é afinal tão especial se comparado aos outros seres, como pensávamos ser! Até a próxima coluna!
Para quem quiser saber mais:
UNIVERSITY of Iowa. Pigeon power. AAAS/EurekAlert!. 2015. Disponível em: http://www.eurekalert.org/pub_releases/2015-02/uoi-pp020415.php. Acesso em: 04 abr. 2015. – mais detalhes sobre o experimento de categorização de objetos por pombos-domésticos estão presentes nesta página.
(as demais informações estão disponíveis em artigos e links já citados nas colunas anteriores)